Desde sempre a joalharia e outros adereços corporais fascinam o Homem, constituindo uma das manifestações mais comuns e universais usada na perpetuação dos acontecimentos marcantes da vida, de simples afetos pessoais e sobretudo como expressão de estatuto social. Para a sua execução, nada mais adequado do que a utilização de materiais nobres que pela sua natureza transmitem um sentimento de eterna sedução.
Dada a abundância de ouro e gemas oriundas de um vasto território ultramarino que do Oriente se estendia ao Brasil, passando por África, Portugal beneficiou a partir do século XVI até final do século XVIII, de uma situação particularmente favorável ao desenvolvimento da ourivesaria e joalharia.
O núcleo exposto é constituído, predominantemente, por peças de origem portuguesa e europeia dos séculos XVII a XIX, que integram a doação de César Filipe Gomes (1946 e 1962), fruto do interesse do doador, ourives de profissão, que reuniu este espólio ao longo de toda uma vida consagrada ao colecionismo e à ourivesaria.
Nesta coleção é possível encontrarmos objetos de diversas tipologias tais como anéis, pendentes, brincos, travessas, fivelas, objetos de adorno, miniaturas, caixas de rapé, relógios, bilheteiras, polvilheiras, etc., que complementam a exposição que pretende evocar vivências sociais de um passado insular que chegou quase intacto até aos nossos dias.
A evolução da joia dos séculos XVII ao XIX
Com o estabelecimento de comércio em Goa, a partir de 1510, Lisboa torna-se, a partir do século XVI, no centro da produção de joalharia em Portugal, beneficiando do contacto direto a pedras preciosas e metais provenientes das Índias Orientais e assumindo uma posição pioneira em relação ao restante continente europeu, no aparecimento de um maior número de mestres de ourives, e na evolução das técnicas associadas ao fabrico de joalharia.
No século XVII vigoram os modelos da centúria anterior, cadeias em ouro maciço, esmaltado, realçado com gemas ou fiadas de pérolas, brincos barrocos em ouro esmaltado com pingentes de pérolas e aljôfares (Brincos | MQC 659).
Contudo, apesar de ainda se assistir a uma continuidade do gosto quinhentista, o século XVII é marcado pela evolução da complexidade das técnicas ligadas ao talhe das gemas, de lapidação da pedra preciosa, conferindo à pedra facetada um papel central na confeção da joia.
Até aqui, a gema assumia um papel secundário valorizando-se o trabalho e a técnica do metal, mas é na centúria de seiscentos que a arte de montar as pedras transforma-se na nova arte do joalheiro e o material de suporte adquire uma função secundária (Brinco | MQC 753).
A partir de 1729, Portugal beneficia da exportação de diamantes provenientes do Brasil, que começaram a ser aplicados nos modelos portugueses (Brincos | MQC 746).
No século XVIII, a produção de joalharia em Portugal seguiu duas tendências distintas. Por um lado, seguiu-se a tendência do século anterior, privilegiando-se o trabalho do ouro com moderado recurso à pedraria (Pendente | MQC 738).
Por outro lado, assiste-se à produção de joias com aplicação massiva de pedraria, com o metal assumindo uma função exclusivamente de suporte das gemas (Pregadeira | MQC 2325).
Nesta segunda tendência destacam-se dois modelos carateristicamente nacionais, a Laça, que nasce da junção do laço e da cruz (Pendente | MQC722 e MQC 740), e o Sequilé, de forma losangular e com três a sete pingentes móveis em forma de pingo, semelhante a uma flor-de-lis alongada (Pendente | MQC 744). Ambos os modelos foram concebidos no século XVII e difundidos na centúria seguinte.
Em 1700, o aparecimento do talhe em brilhante com 58 facetas (anterior talhe em rosa) pelo lapidário italiano Vicenzo Peruzzi, e a abundância de pedras preciosas e semipreciosas provenientes da extração mineira do Brasil, estas últimas de menor valor, mas de grande efeito decorativo, inspiraram os joalheiros portugueses, bem como impulsionaram o gosto pela joia que realçasse o brilho e reflexo da cor das gemas. A joia era, assim, desenhada a pensar na conjugação de gemas de diferentes cores e brilhos, abrangendo novas tipologias de objetos, desde anéis, brincos, colares, entre outros.
Além da diversidade da cor, a joia setecentista é marcada pela sua versatilidade, sendo comuns, os adereços ou ornamentos (parures), como por exemplo, os adornos de cabelos conhecidos por trémulos (joias montadas em hastes móveis e flexíveis com enrolamentos em espiral, para que pudessem mover-se com a luz) e que podemos encontrar alguns exemplares na coleção do Museu Quinta das Cruzes.
Neste contexto, do Brasil eram importadas gemas de cor como safiras, turmalinas, esmeraldas e rubis, destinados a joalharia para a casa real e nobreza, mas também pedras semipreciosas como os topázios imperiais (Fechos de pulseira | MQC 737 e MQC 736), ametistas, crisoberilos crisólitas e os cristais de rocha ou quartzos incolores conhecidos por minas novas, substitutos do diamante, muito procurados por todas as classes pelo seu preço mais reduzido. (Anéis | MQC 671 e MQC 1445).
No final do século XVIII, assiste-se ao lento desaparecimento dos jogos de cor, para dar lugar à unidade cromática, das formas assimétricas para a regularidade e simetria, indo ao encontro do crescente gosto neoclássico que vai influenciar os modelos da joia oitocentista (Brincos | MQC 697, MQC 698 e MQC 1443).
Sob a influência francesa e o gosto neoclássico, a joia do século XIX é marcada pelo equilíbrio e harmonia nas formas e alia-se à moda feminina inspirada na silhueta império de influência greco-romana, que se reflete na simplicidade do vestuário, no abandono das perucas, privilegiando-se os cabelos naturais, deixando cair em desuso alguns dos ornamentos e aparatosas joias setecentistas.
No universo dos modelos oitocentistas, assiste-se à produção de joias, como pendentes, alfinetes, adornos para cabelo, entre outros, com a reprodução de cenas mitológicas e com a recuperação de técnicas como o camafeu (Alfinete | MQC 837).
Em substituição dos trémulos, o adorno de eleição para o cabelo são as aigrettes e travessas de plumas e pequenos diademas, com elementos vegetalistas adornados por grinaldas com gemas ou camafeus, suportadas por pequenos pentes em tartaruga para fixação (Travessa | MQC 970).
Ainda em virtude da simplicidade e discrição da moda feminina do século XIX, assiste-se à adaptação dos brincos, cada vez mais alongados, com o desaparecimento do laço, elemento muito presente nos modelos do século anterior (Brincos | MQC 3192 e MQC 3190).
A joia oitocentista também é marcada pela utilização de matéria menos nobre, como é o caso do aço e outros metais em substituição da prata e ouro, e a aplicação de pastas vítreas em substituição das gemas (Travessa | MQC 976).
A par da influência neoclássica, o século XIX foi também marcado pelo movimento romântico que valorizou os sentimentos e emoções.
Assim, assistimos, neste período, à confeção da “joia sentimental”, ou joia relicário, representada em pendentes com retratos em miniatura de um ente querido, ou até mesmo, outras joias, como alfinetes que continham recordações de um familiar ou especial amigo, como por exemplo, mechas de cabelo (Alfinete | MQC 1452).
No contexto da instabilidade política instalada no país, provocada pelo exílio da Corte Portuguesa no Brasil (1807-1821) e pela Guerra Civil (1828-1834) entre as forças absolutistas e as forças liberais, Portugal viu-se mergulhado numa grave crise económica, política, ideológica e militar.
Este retrocesso obrigou os joalheiros a retomarem a produção de modelos muito populares no século XVII, o que motivou o aparecimento de corações, cruzes de Malta, cruzes latinas, entre outros (Pendente | MQC 754).
No panorama da joalharia portuguesa conclui-se que “todas as joias evidenciam, pela riqueza e diversidade dos modelos o trabalho delicado e paciente dos ourives portugueses e refletem pela sua variedade formal e técnica, a qualidade da arte da joalharia em Portugal, constituindo assim um importante testemunho de um passado que, muitas vezes, só elas podem decifrar”.
Fonte: D’OREY, Leonor (1995). “Cinco Séculos de Joalharia. Museu Nacional de Arte Antiga”. Ed. Zwemmer Publishers Limited, Londres / Instituto Português de Museus, Lisboa. 1ª edição.