Apontamentos Culturais: “A Faiança Portuguesa”

Prato
Oficina: Lisboa
Sec. 17
MQC 2337
Foto: 2009 Pedro Clode

A origem da produção de faiança em Portugal remonta à dita louça malegueira, produção que surge documentada em Lisboa no século XVI associada a artesãos andaluzes.

Na 1.ª metade do século XVII, a faiança portuguesa define-se pela sua original adaptação de motivos ornamentais do Oriente (executados em pintura em tons de azul cobalto), a par da qualidade da manufatura, o que é comprovado através das recentes teorias de exportação desta faiança para a Europa durante este período.

Prato
Oficina: Coimbra (?)
Sec. 17
MQC 2210
Foto: MQC

O carácter específico desta faiança resulta do crescente fascínio pela porcelana chinesa que nesta época invadia os mercados nacionais. Símbolos orientais, desprovidos de qualquer sentido para os ceramistas portugueses, são manipulados familiarmente por estes artesãos que os reinterpretam em novas composições, onde se mesclam influências orientalizantes e a permanência de valores tradicionais, num estilo híbrido. Elemento característico deste novo estilo são os célebres pratos de «aranhões», que irão dominar até finais de Setecentos (Prato MQC 2337)  (Prato MQC 2210) .

Mas a 2.ª metade do século XVII traz-nos algumas alterações a este panorama. Devido a medidas restritivas impostas pelos mercados europeus, a exportação de faiança portuguesa diminuiu. Como resultado deste decréscimo a produção, que então passa a ser feita apenas para o mercado nacional, adquire novas características: os contornos tornam-se mais rígidos, as temáticas que surgem nas zonas mais amplas dos fundos dos pratos adotam uma feição mais ocidental com representações de alegorias, figuras zoomórficas e cenas quotidianas.

Na transição do século XVII para o século XVIII, associa-se também a este movimento uma menor procura por parte dos encomendadores portugueses, mais inclinados para as baixelas em prata e porcelanas chinesas de encomenda, financiadas pelo crescimento económico propiciado pela descoberta das minas de ouro e de pedras preciosas no Brasil.

A crise da faiança portuguesa será ultrapassada com a sua mais profunda reforma – a reforma industrial, que será fomentada durante o reinado de D. José (1750-1777) pelo Marquês de Pombal na segunda metade do século XVIII. Entre 1767 e 1810 serão criadas 56 fábricas de cerâmica em Portugal, dispersas por Lisboa, Região Norte (Viana e Porto), Região Centro (Aveiro, Coimbra, Caldas da Rainha) e Sul (Estremoz).

É neste contexto que foram levadas a cabo profundas alterações que promoveram a atualização da cerâmica através da contratação de técnicos estrangeiros, da adoção e renovação de modelos de produção, das formas e dos equipamentos, e da concessão de privilégios comerciais.

No entanto, apesar de todos os esforços, as fábricas de cerâmica portuguesas, como que amaldiçoadas, foram atingidas por diversas tragédias desde incêndios, a falências e múltiplos trespasses, crises políticas e invasões, que culminaram na quase total extinção das mesmas.

 

Fábricas da Região de Lisboa e Vale do Tejo

Canudo
Real Fábrica do Rato, Lisboa (?)
Sec. 19
MQC 180
Foto: MQC

Foi sob o auspício pombalino que foi fundada a Real Fábrica de Louça em 1767, que devido à sua localização no Largo do Rato, passou a ter a denominação de Fábrica do Rato (Canudo MQC 180).

Em 1770, para se defender da concorrência, foi interditada a importação de cerâmicas, com exceção da porcelana do Oriente quando transportada em navios portugueses, e ficou isenta de impostos a exportação da louça da Real Fábrica. No entanto, e apesar destas medidas, a Fábrica cedo começou a ter enormes prejuízos que ditaram o seu fim em 1835.

Uma outra produção cerâmica lisboeta que se distinguiu neste período foi a Real Fábrica da Bica do Sapato, fundada em 1796 por Luís Soares Henriques, e que foi consumida por um incêndio ca. 1820 (Bebedouro MQC 184).

Outras oficinas cerâmicas na capital sofreram implementações durante as reformas pombalinas, mas foram imediatamente quebradas com as invasões francesas, mais tarde com os decretos de 1808 e 1810 que abriram o mercado ultramarino às exportações inglesas, e por fim com a guerra civil de 1832-34.

Mas a partir de meados do século XIX, e após estas convulsões, a produção cerâmica volta a receber incrementos, nomeadamente por via da sua industrialização. Várias fábricas surgem na capital, neste período, como a Fábrica de António da Costa Lamego, fundada em 1889 (depois Viúva Lamego; (Galheteiro MQC 1470), a Real Fábrica de Louça de Sacavém, a Fábrica de Sant’Anna (Canjirão MQC 1121), entre outras.

 

Fábricas da Região Centro

Caldas da Rainha

Apesar de apresentar alguma tradição na arte da cerâmica, apenas no século XIX a produção das Caldas da Rainha conquistou o seu estatuto.

Para tal em muito contribuiu o mecenato real, nas pessoas da rainha D. Maria II e D. Fernando II, que estimularam o talento do ceramista Manuel Cipriano Gomes (conhecido por Manuel Mafra) que, em 1843, adquiriu a oficina de D. Maria dos Cacos e iniciou uma florescente produção cerâmica. Na esteira desta produção, outras fábricas se desenvolveram com sede nesta região.

Juncal

Bacia
Real Fábrica do Juncal
Sec. 18
MQC 1107
Foto: MQC

De entre as produções cerâmicas da região Centro, destaca-se a da fábrica do Juncal. Fundada em 1770 por José Rodrigues da Silva e Sousa (artista de estuque), esta produção adquire o seu alvará e o direito ao uso das armas reais em 1774 passando a ser conhecida como Real Fábrica do Juncal.

Tal como as suas congéneres, foi profundamente afetada pelas invasões francesas e foi encerrada em 1876. (Bacia MQC 1107)

Coimbra

Prato
Fábrica de Vila Viçosa
Sec. 19
MQC 2209
Foto: MQC

Retomada a produção cerâmica na zona de Coimbra durante o século XVIII, a produção mais conhecida desta região nos séculos que se seguem será a faiança ratinho, de cariz popular.

O termo Ratinho, associado à designação de rústico e beirão, era um adjetivo também usado para caracterizar os trabalhadores das beiras que sazonalmente se deslocavam ao Alentejo para trabalhos agrícolas.

Esta produção cerâmica é caracterizada por formas ingénuas, de policromias características e motivos populares tais como a decoração figurativa, zoomórfica, vegetalista e floral, numa representação simples de feição popular. (Prato MQC 2209)

 

 

Fábricas da Região Norte

Prato
Fábrica de Viana do Castelo
Sec. 18
MQC 1114
Foto: Pedro Clode

Não só na capital e centro do país se desenvolveu a manufatura cerâmica. No Norte de Portugal, encontrava-se a famosa Fábrica de Viana.

Localizada em Darque (Viana do Castelo), esta fábrica foi fundada em 1774 e desenvolveu diversas tipologias de produção de boa qualidade. (Prato MQC 1114)

Mas é na região do Porto que surgiu o maior centro produtor de faiança portuguesa do século XVIII, início do século XIX, beneficiando das regalias concedidas pelas reformas pombalinas e da introdução de capital exterior.

A Fábrica de Massarelos, situada no Porto, parece ser a mais antiga unidade industrial deste sector, antecedendo mesmo a Fábrica do Rato, com início de laboração em 1764. Fundada por Manuel Duarte Silva, a fábrica, que se manteve nas mãos da família durante alguns anos, produziu peças de faiança quer para o mercado nacional, quer para as colónias e mesmo para a Galiza. Durante este período, a sua produção parece ter-se especializado em peças pintadas a azul, debruadas pelas características tarjas de Rouen. (Bacia MQC 1108).

Mais tarde, a fábrica foi arrendada a outros industriais (de entre os quais Rocha Soares), e mais tarde atravessou uma crise de produção em 1829/1830, fruto de um incêndio e de litígios entre os proprietários da fábrica. A sua situação acabou por se estabilizar apesar de algumas mudanças de propriedade.

Mas a partir de 1870, e com a morte de João da Rocha e Sousa, a Fábrica de Massarelos entra num círculo de instabilidade administrativa que só terminará em pleno século XX.

Após estar paralisada entre os anos de 1895 e de 1900, passou depois para a posse de João Regis de Lima, e foi outra vez trespassada para uma nova sociedade, composta na sua maioria por ingleses, com a designação de Empresa Cerâmica Portuense, Ldª. Esta é dissolvida em 1912, e cede o lugar a uma nova sociedade, sendo os sócios Archibald James Wall e mulher e Charles F. Chambers e seu filho, através da firma Chambers & Wall.

Em 1920 o edifício é consumido por um incêndio, passando a vigorar apenas o prestígio da marca “Massarelos – Porto”, que continuou a ser utilizado na produção da fábrica de Roriz e unidades associadas.

Finalmente em 1936, a fábrica foi vendida à Companhia das Fábricas de Cerâmica Lusitânia SARL.

Na outra margem do rio, em Gaia, a laborar desde 1784, salientamos a Fábrica de St.º António do Vale da Piedade que teve à frente o comerciante genovês Jerónimo Rossi, vice-cônsul da Sardenha no Porto.

É noticiado o grande volume de exportações da fábrica para o Brasil mas, tal como as restantes produções cerâmicas, sofreu com as invasões franceses e a posterior abertura do mercado às importações das manufaturas inglesas.

Jeronimo Rossi morre em 1821, continuando as filhas, especialmente Joana Rossi, a explorar a fábrica.

Vaso
Fábrica de Louças de Santo António do Vale da Peidade
Sec. 19
MQC 878
Foto: Pedro Clode

Após um período em que passou pelas mãos de Francisco Galvão e mais tarde Francisco da Rocha Soares e João da Rocha e Sousa, a fábrica é de novo arrendada, em 1834, já depois das guerras liberais, a uma sociedade em que entrava João de Araújo Lima, e de novo passa de mãos, um ano depois, para a posse de J. Augusto Kopke, e volta a ser gerida por Joana Rossi. Em 1843, um incêndio destrói a fábrica e em 1846, Araújo Lima reconstitui o complexo produto inicial (Vaso MQC 878).

Posteriormente à morte de Araújo Lima, sob a direção de João do Rio Júnior, introduziram-se modificações que levaram à produção de peças de ornamentação em relevo para interiores e exteriores.

Em 1886 a fábrica ardeu, indo alguns dos seus operários para as Caldas da Rainha, por iniciativa de Feliciano Bordalo Pinheiro. A sociedade que a explorava extinguiu-se em 1902, apesar de a fábrica continuar a laborar até ao dealbar dos anos trinta.

De entre as fábricas de faiança portuguesa do Porto, destacamos ainda a Fábrica de Miragaia. Fundada em 1775 por João Rocha, emigrante brasileiro, e seu sobrinho João Bento da Rocha, esta fábrica suportou grande parte da sua produção na exportação para o mercado do Brasil.

Produzindo louça de boa qualidade, a sua estratégia passou por adotar modelos decorativos, nomeadamente as características estampilhas, concorrendo diretamente com a produção inglesa. Para esta estratégia em muito contribuiu a captação de afamados mestres de outras fábricas cerâmicas.

O percurso desta produção cerâmica seguiu a par de outras com um início de gestão familiar.

Depois dos difíceis anos das invasões francesas, seguiu-se um período de prestígio, sendo a Fábrica de Miragaia considerada em 1814, como a maior fábrica do ramo no Porto.

No entanto, na década que se seguiu, a importação da louça inglesa, quer para Portugal, quer para o mercado brasileiro, ditou a estagnação e a crise na produção de Miragaia. Como alternativa, tentou imprimir-se uma nova dinâmica em finais da década de 20, com a imitação de louça inglesa e a produção de louça de pó de pedra.

Com a morte em 1829 de Francisco Rocha Soares, tomou posse da Fábrica de Miragaia Francisco Rocha Soares Filho, que estrategicamente irá dominar o mercado da faiança portuense ao congregar numa só organização as outras empresas concorrentes (fábricas do Carvalhinho, Fervença, Fontinha, Monte Cavaco e Vale Piedade).

No entanto os seus estreitos relacionamentos políticos na Guerra Civil, e mesmo com a Junta do Porto, terão o seu revés resultando na sua ruína em 1852, quando é dado como falido e a fábrica é encerrada. Finalmente em 1857, quando morre o referido proprietário, a fábrica é vendida em hasta pública.

Outras fábricas cerâmicas, que se encontravam localizadas na margem Sul do Douro, em Vila Nova de Gaia, diversificaram o leque de produção desta cidade. Destas destacam-se a Fábrica da Afurada, que se tornou famosa pela produção de vasilhas antropomórficas, bem como a Fábrica de Fervença.